A agressão a um animal pode indicar que a pessoa também pratica violência contra outras. Isto é, na prática: um homem que bate em bicho também agride mulher. Em Florianópolis, um caso de agressão a um cachorro desencadeou uma avalanche exposed de abusos físicos, psicológicos e sexuais contra jovens mulheres, em maioria menores de 18 anos. No total, são dezenas de “exposeds” sobre relacionamentos abusivos – o ato de expor uma denúncia contra alguém na internet.
O estopim
Há dois dias um rapaz de 19 anos, morador da cidade, divulgou em sua conta no Instagram que havia cortado de forma violenta as orelhas de seu cachorro. Indignadas, diversas garotas começaram a lincha-lo virtualmente. Porém, o buraco era mais em baixo. Algumas relataram que já haviam sofrido algum tipo de abuso por parte dele. Foi o que deu a ignição para que ao menos 80 garotas divulgassem relatos de casos abusivos de diversos outros jovens de Florianópolis.
Em uma thread (linha de narrativa) no Twitter, “VL”, uma garota de 17 anos, juntou e publicou todos esses relatos sob o título “os assédios de floripa: a thread”, que tratam de alguma forma de abuso: opressão psicológica, ameaças, relações íntimas forçadas, importunação sexual, possíveis estupros.
Medo impede denúncia formal
De modo geral, todas as mulheres que resolveram contar o que já foi feito contra elas dizem que o fazem com muito medo. Esse medo tem diferentes faces: medo de se expor, medo de ser julgada, medo de ser retaliada, medo de que nada aconteça.
A reportagem do Correio de Santa Catarina, em contato com VL, descobriu que nenhum desses casos foi denunciado às autoridades. “Por quê não denunciaram?”, perguntamos a ela, “a gente sabe como funciona aqui, algumas meninas já tentaram mas desistiram”, disse ela ao telefone.
Ela própria conta que esteve em um relacionamento abusivo por dois anos. Questionada sobre por que as garotas permanecem nessas relações tóxicas e abusivas, VL conta que muitas vezes as vítimas não percebem, ou percebem mas não conseguem agir, e é a conversa com outras amigas que faz esclarecer como aquilo que estão passando não é normal, está errado e deve cessar.
Pela falta de denúncia, a maioria dos problemas causados às moças desses relatos se limitaram às famílias. Em alguns casos é nítido que não houve compreensão por parte de pais ou mães e que também as vítimas foram tomadas como culpadas, principalmente pelos homens envolvidos. Nas reações do Twitter a esse fio inclusive constam respostas com desdém e debochadas de supostos agressores.
A sororidade, porém, está maior, vista na prática. As garotas se apoiam publicamente, falam que outras devem também denunciar, que as vítimas não são culpadas, e que há mais dezenas de casos do tipo.
Essa barreira em contar o que houve no passado recente fez com que muitas dessas garotas sofressem psicologicamente. Nos relatos, algumas dizem que já superaram, outras parecem ter algum alívio somente agora nesse massivo exposed, que incluiu uma lista de nomes de possíveis agressores.
Dpcami vai investigar
A thread veio ao ar no início da noite dessa quinta-feira (21/5) e, até a manhã dessa sexta, contava com 570 compartilhamentos e 1,8 mil curtidas. Chamou não só a atenção da reportagem, como também da Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (Dpcami) de Florianópolis.
Em conversa com o Correio SC, o delegado Gustavo Kremer diz que recebeu o conteúdo das denúncias ainda na quinta e que também chamou a atenção por se tratar de possíveis crimes. Ele diz que conversou com VL e que a receberá nesta sexta na delegacia.
“Vamos receber a família dela para contar melhor. Vamos ouvi-los porque o assunto é muito sério. A partir do relato dela vamos montar uma força-tarefa com mais dois delegados aqui da Dpcami e filtrar todos esses casos e apurar o que é crime, também porque há casos que tratam de homens mais velhos. Se ocorreram em outro município vamos dar o devido encaminhamento às outras Dpcami”, disse Kremer ao telefone.
O delegado garante que haverá nas próximas semanas encaminhamentos formais sobre os casos.
Como primeiro impacto, as denúncias dessas jovens mulheres de Florianópolis deixam uma mensagem muito clara: não aceitarão mais relacionamentos abusivos.
Por Lucas Cervenka