Veiculada em mídia nacional, recente matéria tratou acerca da negativa de matrícula de pessoas com autismo em escolas. Nela uma mãe inicia um sofrido relato sobre a busca em mais de seis escolas para matricular seu filho. Em cinco delas, recebeu uma resposta negativa.
A reportagem menciona a existência de resoluções de conselhos municipais e estaduais que estariam estipulando limites para as matrículas de pessoas com autismo, o que é francamente contrário ao ordenamento jurídico brasileiro, pois afronta inúmeros institutos jurídicos constitucionais e infraconstitucionais.
Destacamos aqui três pontos para debate: o fundamental direito à educação; os dados estatísticos desta população; e a sobrevivência de um Brasil que sempre achamos que ficou para trás.
Sobre o primeiro ponto é necessário relembrar que, além de constitucionalmente previsto, o Direito à Educação é considerado um direito habilitante na medida em que saber ler e escrever é chave essencial para a cidadania na era da informação, isto é, sem a consecução plena deste direito, muitos dos demais não podem ser acessados. E este direito abarca todos os brasileiros, independentemente de quaisquer características dos indivíduos.
No entanto, ao cruzarmos o reconhecimento deste direito com os dados das mais de 18 milhões de pessoas com deficiência no Brasil (PNAD, 2022), vemos que as taxas de analfabetismo, fundamental incompleto e ensino médio completo são, respectivamente, de 19,5%, 63,3% e 25,6% entre pessoas com deficiência e de 4,1%, 29,9% e 57,7% entre aqueles sem deficiência, escancarando uma grave desigualdade no acesso, permanência e aprendizagem do público autista (que compõe a população com deficiência).
Temos então o terceiro ponto, o de um Brasil fantasiado de inclusivo, de uma democracia social que desconhece limites de raça, credo, condição econômica ou de deficiência. São violências reais e simbólicas que seguem ocorrendo sem desencadear medidas efetivas, até mesmo de quem possui o dever legal de salvaguarda.
Quando não se enfrenta uma violência ela tende a nos assombrar. Ouvir todos os lados precisa ter o condão de apoio social ao respeito. É preciso encontrar soluções para tirar das escolas o vergonhoso véu de exclusão que lhes desonra e valorizar seu lugar primordial na construção de conhecimento e quebra de barreiras.
Pautar a organização da educação inclusiva em estudos técnicos, com práticas baseadas em evidências, capacitação continuada e programas de fomento, com destaque para ampliação do suporte financeiro às escolas públicas e privadas, são pontos primordiais ao debate.
Em cenas do clássico filme “O ovo da serpente” é possível intuir a árvore pela semente e a brutal violência causada pelo preconceito. Ao permitirmos que em rede nacional sejam defendidas ideias excludentes e notoriamente contrárias à legislação, sem que nos levantemos eivados de indignação, em nada nos diferencia daqueles que já defenderam a possibilidade de classificar seres humanos.
Dados não derrubam o preconceito. Educação sim. Educação para vivermos em um mundo menos ignorante do que este que insiste em nos rodear. A história cobrará seu preço e não haverá meios de expiar esse passado se nossas ações não se modificarem na urgência necessária.
Por Flávia Marçal e Lucelmo Lacerda
Lucelmo Lacerda é doutor em Educação, com Pós-doutorado em Psicologia e pesquisador de Autismo e Inclusão, autor do livro “Crítica à Pseudociência em Educação Especial – Trilhas de uma educação inclusiva baseada em evidências”.
Flávia Marçal é advogada, doutora em Sociologia, professora da Universidade Federal Rural da Amazônia e gestora do Grupo Mundo Azul.
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