O avanço das plataformas digitais tem transformado o cenário dos vícios no Brasil. Antes associados principalmente ao álcool e às drogas ilícitas, os casos de dependência hoje envolvem também uma nova realidade: a compulsão digital. Um dos focos de maior preocupação são os jogos de apostas online, que já atingem cerca de 10,9 milhões de brasileiros em situação de uso perigoso, segundo pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O crescimento desse fenômeno acendeu o alerta entre especialistas e autoridades, levando o Ministério da Saúde a se posicionar oficialmente sobre o tema. Em ofício enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF), foi defendido que o tratamento para o vício em jogos de aposta seja equiparado ao oferecido a alcoólatras e dependentes químicos. O documento foi anexado à ação que tramita na Corte e discute a legalidade das chamadas bets no país.
Segundo a psicanalista, filósofa e autora do livro O Caminho para o Inevitável Encontro Consigo Mesmo, Ana Matos, o cérebro humano não faz grande distinção entre substâncias químicas e comportamentos altamente estimulantes. “Nos dois casos, estamos lidando com o mesmo circuito cerebral de recompensa, onde a dopamina — neurotransmissor ligado ao prazer — é liberada em alta escala”, explica. Para ela, os jogos de apostas ativam esse sistema de forma intensa e repetida, criando uma expectativa de ganho que raramente se concretiza, mas que mantém o cérebro em constante estado de alerta. “É como se a pessoa vivesse num ciclo de ‘quase ganhar’, o que alimenta ainda mais o desejo e a compulsão. Esse padrão se assemelha muito ao que observamos no uso de drogas.”
O ambiente mudou, mas o risco permanece
Entre os anos de 1990 e 2000, bares e estabelecimentos clandestinos com máquinas caça-níqueis eram comuns em diversas cidades brasileiras. Embora proibidas a partir de 2004, essas máquinas se popularizaram pela promessa de dinheiro fácil e entretenimento imediato. Nos últimos anos, essa lógica migrou para o ambiente virtual — com alcance ainda maior e menos fiscalização.
As plataformas conhecidas como bets funcionam 24 horas por dia e estão disponíveis a poucos toques no celular. Versões digitais dos caça-níqueis, apelidadas de “tigrinho”, viralizaram nas redes sociais e já aparecem em letras de músicas. Com visual colorido, sons e recompensas rápidas, essas plataformas criam uma experiência altamente estimulante e mais propensa à compulsão.
Para Ana Matos, esse tipo de design não é ingênuo nem inofensivo. “Esses jogos são desenhados com base em estudos de neurociência e comportamento. Eles são estrategicamente arquitetados para capturar a atenção, estimular a excitação e prender o usuário em ciclos rápidos de recompensa”, diz. Ela alerta que recursos como luzes piscando, sons, bônus inesperados e ‘quase vitórias’ mantêm o cérebro sob estímulo constante. “É uma armadilha muito sofisticada, travestida de entretenimento. E o pior: acessível a qualquer hora do dia, no bolso, no celular, com um clique.”
Consequências da compulsão por apostas
Apesar de não deixarem marcas visíveis, como em outros tipos de dependência, os vícios digitais têm consequências reais. A compulsão por apostas online já causa prejuízos no ambiente profissional, como queda de produtividade, dificuldades de concentração e até afastamentos médicos relacionados à saúde mental. A febre das apostas também está gerando impactos financeiros: 53% dos profissionais de Recursos Humanos relataram dificuldades financeiras entre colaboradores devido ao envolvimento com jogos, enquanto 54% dos funcionários utilizam horários de descanso, como a pausa para o almoço, para apostar, segundo pesquisa da Creditas Benefícios, em parceria com a Wellz by Wellhub e o Opinion Box.
“O vício em apostas online pode destruir uma vida de forma invisível”, alerta Ana. Ela explica que, diferente do vício em álcool ou drogas, essa compulsão não deixa cheiro, nem olhos vermelhos ou ressacas aparentes. “Mas há insônia, ansiedade, desatenção, irritabilidade e muito prejuízo de forma geral, não somente financeiro.” Segundo a psicanalista, a mente do apostador fica ocupada com a próxima jogada, com o prejuízo anterior ou com a ilusão de uma vitória que mudaria sua vida. “No trabalho, isso impacta diretamente a produtividade. E nas relações pessoais, o distanciamento emocional é inevitável. O sujeito está preso num looping mental que exige cada vez mais energia psíquica e entrega — ou seja, cada vez menos espaço para a vida real.”
Além do impacto financeiro, há implicações emocionais graves. O ciclo de ganho e perda constante, aliado à ilusão de controle, pode gerar frustração crônica, insônia, ansiedade e depressão.
Perfis de apostadores
Os aplicativos de apostas no Brasil têm atraído, em sua maioria, homens jovens com escolaridade de nível médio, segundo pesquisa do Instituto DataSenado. A faixa etária mais impactada está entre 16 e 39 anos, enquanto as mulheres representam apenas 38% do total de jogadores.
Um levantamento realizado pelo Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (Obid) lança um alerta ainda mais preocupante: os adolescentes são o grupo mais vulnerável ao vício em apostas. Segundo os dados, 55,2% dos jovens entre 14 e 17 anos já se enquadram na zona de risco ou apresentam algum nível de transtorno relacionado ao jogo. No recorte do último ano, 10,5% dos adolescentes relataram ter jogado, contra 18,1% entre os adultos.
No panorama regional, o Sul do país lidera em número de apostas, seguido por Centro-Oeste, Sudeste, Norte e Nordeste — este último com os índices mais moderados.
De acordo com a especialista, há uma explicação clara para a maior vulnerabilidade dos jovens. Ela destaca que o cérebro adolescente ainda está em formação, especialmente nas áreas relacionadas à autorregulação e tomada de decisão — o que os torna mais impulsivos e suscetíveis à busca por prazer imediato. “Soma-se a isso a solidão, a pressão por desempenho, a necessidade de pertencimento, as comparações. É um campo fértil para a compulsão”, analisa.
Segundo ela, vivemos uma cultura de estímulo constante. “Hoje, os jovens estão conectados o tempo todo. Vivem sob uma enxurrada de promessas de sucesso fácil, veem seus ‘ídolos’ fomentando esse comportamento. Apostar vira quase um símbolo de ousadia, de liberdade, de não depender dos meios convencionais”, afirma. Mas, por trás disso, alerta a psicanalista, há uma profunda fragilidade emocional. “O vício se instala exatamente onde falta escuta, presença, suporte e interesse real no que está acontecendo na vida do outro.”
O desafio de enfrentar uma epidemia silenciosa
Sem deixar marcas físicas, os vícios comportamentais relacionados às apostas vêm se consolidando como uma nova epidemia silenciosa. A compulsão já compromete rotinas, relações e trajetórias profissionais, em um cenário que exige atenção imediata de autoridades, empresas e famílias. Para Matos, reconhecer o jogo como um transtorno é apenas o primeiro passo. “O próximo, e mais urgente, é garantir apoio acessível e eficaz para quem precisa sair dessa roleta”, conclui.
*Ana Matos é psicanalista, filósofa e autora do livro O Caminho para o Inevitável Encontro Consigo Mesmo